Imagine um país cercado por gigantes como China e Índia. Um lugar de paisagens de tirar o fôlego, lar do Monte Everest, mas que hoje vive o oposto da serenidade de suas montanhas.
No Nepal, uma geração cansada de promessas não cumpridas e de elites intocáveis decidiu se levantar. Jovens tomaram as ruas, bandeiras negras com caveiras tremularam no ar e o país mergulhou em uma revolta sem precedentes.
Mas o que está por trás desse grito coletivo de indignação?

O símbolo que virou bandeira de protesto
A imagem pode parecer saída de um mangá, mas é real.
A caveira sorridente com chapéu de palha, símbolo da tripulação de Luffy, protagonista de One Piece, apareceu nas ruas de Katmandu.
Para muitos, ela representa liberdade, coragem e resistência.
“Eles se inspiraram na rebeldia de Luffy contra um império corrupto”, comentam os próprios manifestantes nas redes.
O movimento começou após o governo bloquear 26 redes sociais no país. A justificativa oficial era conter fake news e discursos de ódio. Para a juventude, porém, a medida soou como censura e silenciamento.

Um país de passado turbulento
O Nepal nunca foi colonizado, mas viveu séculos sob o domínio de dinastias autoritárias. A mais famosa delas, a dinastia Rana, concentrou o poder entre 1846 e 1951. Era um governo fechado, onde os cargos passavam de pai para filho, e o povo vivia sob forte desigualdade.
Mesmo após a queda dos Rana, a monarquia e as crises políticas persistiram. No século XX, o país passou por golpes, guerras civis e tentativas frustradas de democracia. Em 2008, o Nepal finalmente se tornou uma república democrática federal.
Mas a esperança que veio com o novo regime logo se transformou em frustração.
A ferida que nunca cicatrizou
A juventude que hoje protesta cresceu ouvindo promessas de prosperidade. Mas o que viu foi o contrário:
Desemprego em alta, corrupção endêmica e uma elite política que vive em um mundo à parte. Enquanto muitos lutam para conseguir energia elétrica estável ou água potável, os “nepo babies”, filhos e herdeiros dos poderosos, exibem luxo nas redes.
“Eles se dizem líderes do povo, mas não vivem a realidade do povo”, escreveu um jovem manifestante no Discord “Juventude Contra a Corrupção”.
Em 2024, o desemprego entre jovens de 15 a 24 anos chegou a 20,8%, e 870 mil nepaleses deixaram o país em busca de trabalho.
Cerca de um terço do PIB vem do dinheiro enviado por esses migrantes.
Quando a paciência acaba
O estopim veio no dia 4 de setembro de 2025, quando o governo de KP Oli anunciou o bloqueio das redes sociais.
Em poucos dias, milhares de jovens tomaram as ruase o Vale de Katmandu virou palco de uma rebelião.
O governo respondeu com violência: gás lacrimogêneo, canhões de água e até munição real.
O saldo foi trágico: 70 mortos, centenas de feridos e 300 prédios incendiados, incluindo o Supremo Tribunal e as residências de ex-primeiros-ministros. KP Oli renunciou, e o país mergulhou em incerteza.
O que vem depois do caos?
Em meio à desordem, algo inesperado aconteceu.
Por meio de uma votação online organizada por jovens no Discord, a ex-presidente da Suprema Corte, Sushila Karki, foi escolhida como primeira-ministra interina.
Para o historiador Emiliano Unzer, da UFES, esse episódio simboliza algo maior:
“Eles estão lutando pela própria democracia. Sempre lutaram por ela.”
Agora, o Nepal aguarda novas eleições em 2026.
Mas o desafio é gigantesco: transformar a indignação de uma geração em um projeto político sólido — tarefa tão difícil quanto escalar o Everest.
Um grito que ecoa além das montanhas
O movimento da Geração Z nepalesa é mais do que um protesto.
É um pedido coletivo por dignidade, por voz e por futuro.
Entre bandeiras negras e mensagens online, esses jovens estão tentando reconstruir algo que o tempo e a corrupção corroeram: a esperança.
“O que a gente quer não é destruir o país, é começar de novo”, dizia uma das faixas nas manifestações.
E talvez, no fim das contas, seja exatamente isso que o Nepal mais precisa.